sábado, 5 de janeiro de 2013

CORRUPÇÃO, MENSALÃO, STF E "TEATRALIZAÇÃO"


 

O Brasil conviveu, ao longo de 2012, com o julgamento do processo do chamado “Mensalão”, termo que se popularizou na mídia nacional, depois que foi assim alcunhado por ex-deputado do PTB, denunciante de um esquema que envolvia uso de dinheiro e cargos públicos para financiar a compra de votos, e apoios, de legisladores eleitos pelo povo, em eleições diretas, com o fim de garantir maioria nos encaminhamentos de projetos do Poder Executivo Federal, no período de 2003 a 2005.
O STF-Supremo Tribunal Federal, tem oferecido, já há vários anos, as transmissões de suas sessões de forma aberta, por canal de televisão, para todo o território nacional. Uma ação altamente didática, ainda mais se levarmos em conta se tratar da mais alta corte do país. Essa prática de abertura de imagens e sons, ao vivo, sempre se transformou em aulas inéditas para a população brasileira, até então distante do mundo legal e jurídico, por várias razões.
Depois de uma ditadura de 21 anos, entre 1964 e 1985, a população brasileira ficou diminuída em suas atitudes e a busca de informações verdadeiras, ainda mais as oficiais, ficou revestida do mito do poder de acesso, do poder dos relacionamentos privilegiados, e do poder da linguagem empregada, mesmo pelos que deveriam ter o compromisso ideológico de tratar o acesso ao mundo da justiça de forma transparente, acessível, sem mistérios.
Após o período ditatorial, o acesso e a consciência sobre os direitos humanos básicos e essenciais, surrupiados de forma violenta e autoritária durante o regime militar, deveria ser uma atitude permanente em todos que se preocupam em recolocar o Brasil nos trilhos da Democracia plena, abrangente e coerente.
Mas um dos aspectos interessantes dessa prática do STF, foi justamente a reação que vários profissionais do direito, alguns doutores das leis, apresentaram sem conseguir disfarçar um certo estupor.
A carreira e atuação do advogado, via-de-regra, sempre se caracterizou pela teatralidade, pelo uso hermético de termos em latim, pelo sincretismo do sentido de petições, procurações, e todo tipo de documentação a ser apresentada em nome de seus clientes.
Assim o digo, com a maior tranquilidade, como filho de advogado, com o qual aprendi muitos significados de termos e expressões normalmente incompreensíveis por cidadãos outros, que não os rábulas ou causídicos, dependendo da época de atuação e formação acadêmica.
Em tribunais e sustentações orais, então, sempre foi possível notar as transformações por que passavam alguns advogados quando saiam de suas práticas rotineiras e se transfiguravam em usuários de uma oratória que em muito lembrava os filmes e peças de teatro, sobre o senado romano, acentuadas por gestos exagerados, gritos, descabelamentos e outras práticas, que mais pareciam uma catarse. Tudo para tentar impressionar jurados, magistrados e para manter suas famas de grandes oradores.
O Brasil dos tribunos, principalmente na política e cargos governamentais, de voz empoada e gestos largos, de discursos emocionais e piegas, da exploração primária das necessidades humanas, foi vítima de um corte abrupto em 1964, quando a frieza do autoritarismo traumatizou a sociedade brasileira, até então crente nas soluções amistosas e cordiais, propaladas por várias visões equivocadas de sua história e formação.
Nosso país, fundado e dominado por concepções medievais da Igreja Católica, assim como todo o restante da América Latina, foi embalado por premissas falsas sobre as verdades e mentiras. Poucos conflitos foram resolvidos, ao longo da nossa história, por mediação real.  Todas as rebeliões foram punidas de forma cruel, violenta, para marcar o comportamento do brasileiro. É só ver o exemplo de Tiradentes, esquartejado, salgado e apresentado ao povo com suas partes entaladas em lanças de madeira. Canudos, é outro exemplo e o episódio do Contestado não foge da regra de “terra arrasada e salgada”.
Enquanto nos formávamos como democracia, mesmo após essa história de mentiras e manipulações conceituais, e mesmo depois dos 15 anos de ditadura de Getúlio Vargas, muitas quarteladas e ameaças de golpe se repetiram, demonstrando a distância entre a docilidade aprendida pelo “cordial” brasileiro, e a atitude pragmática das elites e do poder.
Duas categorias profissionais foram brindadas com decreto imperial, ainda do império herdado de Portugal, e aquinhoadas com a agregação do prefixo “doutor”, na tentativa de dignificar atividades profissionais liberais, num país dominado pelos funcionários públicos, pelos herdeiros das capitanias hereditárias, e por toda a sorte de embargos ao empreendedorismo individual, e pela premiação dos reconhecimentos outorgados pelo poder central.
Médicos e advogados receberam essa designação e as mantêm até hoje, apesar das transformações republicanas, da Semana de Arte de 1922, e de toda a evolução que houve nas sociedades contemporâneas.
Mas ambas as carreiras, por suas características de tratar de questões íntimas, orgânicas, sentimentais, familiares, comportamentais, poderiam ter desenvolvido uma atitude educadora e desmistificadora de seus saberes e conteúdos, pois talvez sejam as que mais se aproximam do núcleo do ser humano, tanto simbólico quanto corpóreo.
Os mitos dos saberes acumulados, devidamente protegidos pelas linguagens técnicas, serviram como reserva de segredos, como proteção, muito mais dos profissionais, do que dos que deles necessitavam.  E assim as receitas médicas só eram lidas por pessoal de farmácias que conheciam aqueles hieróglifos, ou por funcionários de cartórios e outros órgãos correlatos, que interpretavam os termos rebuscados dos trâmites legais, gerados na operação do direito.
Nesse cenário, acentuado pelas cores fortes das crises econômicas dos anos 80 do século XX, e sucedidas pelas quase crônicas novas crises desencadeadas pelo poder financeiro do mundo capitalista, o Brasil entra numa nova era, mas eivado, viciado, contaminado, por décadas de autoritarismo, de falta de transparência, acrescidas da mentalidade e cultura vigentes em várias escolas de direito, que privilegiam o conflito e não a mediação. E em algumas escolas de medicina, pela procura dessa atividade como algo “bem pago”, nem sempre pela sintonia, vocação ou identidade com a profissão.
Voltando ao início desta crônica, entramos no século XXI, mesmo que dominados pelo mofo e bolor culturais do anterior, mas com impulsos de reconquista de direitos humanos muito propalados e muito pouco exercitados, embalados pelos impulsos de uma tecnologia aparentemente fornecedora das condições libertadoras e abertas para obtenção de informações.
E um desses direitos se refere ao acesso à informação, ainda mais aquela que diga respeito aos dirigentes públicos, aos legisladores, e aos milhares de cargos nomeados por livre indicação dos “donos” de algum poder.
Boa parte de nossa imprensa, ainda devidamente marcada e traumatizada pelas tesouradas da censura dos 21 anos de regime militar, e influenciada por interesses econômicos transnacionais, não tem sido a fonte mais efusiva de oferecimento da pretendida libertação informacional. Sobre esse aspecto sugiro a leitura do magistral texto do Jornalista Audálio Dantas, contido no livro “As Duas Guerras de Vlado Herzog”, recentemente lançado, como resgate histórico das verdades necessárias, encobertas por mentiras oficiais do poder de plantão, mas que influenciaram muitas gerações, que não aprenderam a usar ou disponibilizar informação real e de boa qualidade.
Retornando ao STF e suas aulas de educação política e democrática à distância, encontramos um sucesso de audiência e participação populares, quando aquele Tribunal, coerente com a sua prática de vários anos, irradia para todo o Brasil as cenas reais, e verdadeiras, de um julgamento momentoso, apesar de sete anos depois de ocorrido, quando acusados de corrupção, de aproveitamento de cargos públicos para formar quadrilhas e delinquir passam pelas “barras dos tribunais”, termo antigo que se referia à separação física entre togados e simples cidadãos, barreira que o mais alto tribunal acaba de derrubar via tecnologia moderna de alta definição, ao vivo, e em “real time”, como gostam os deslumbrados e seguidores dos termos sincretizados em idioma estranho ao nosso.
E assim, nessa toada elevada e respeitadora dos direitos de acesso à verdade e à realidade, a população brasileira recomeçou seu despertar de consciência própria de sua cidadania, de seus efetivos direitos banidos pela barbárie do poder ditatorial, e posteriormente pela ditadura dos que deveriam usar seus cargos públicos para educar para a democracia e para a cidadania ativa efetiva.
E se teatro é um julgamento aberto, onde os magistrados se expõem de todas as formas, que podem ser corrigidos, criticados, e emendados por qualquer cidadão, que tenha ou não formação técnica na área, prefiro esse “teatro do oprimido” como o chamava o genial dramaturgo Augusto Boal, uma vez que em benefício da verdade, da transparência e na luta contra a dominação das massas pela linguagem cifrada, pelo mito dominador do idioma exógeno, pelos “segredos de justiça”, que tem servido para proteger discutíveis direitos ao sigilo de camadas privilegiadas de uma sociedade ainda dominada por castas nem sempre merecedoras dos privilégios presenteados de forma dúbia, mas nem sempre merecidos como participantes de uma cidadania cumpridora da lei.
E se teatro é o que o STF realizou, como ficam as teatrais, essas sim, atuações de vários advogados que sempre usaram entonações vocais, poses estudadas, frases de efeito, com se num permanente “script” hollyoodiano estivessem baseados.
Acusar de teatro a atuação democrática e exemplar do STF é uma atitude que pode demonstrar o receio pela retirada da cortina de mitos que sempre protegeu vários profissionais do direito, e a apropriação pelo povo de uma linguagem cristalina, que vai mudar a relação entre cidadãos e seus representantes, obrigando a uma mudança cultural, comportamental.
E vivas ao STF, que deveria estar sendo celebrado como exemplo de atitude democrática e transparente, não se curvando a ameaças de poderosos, ou de pressões de interesses escusos.

Depois de tanto tempo de obscurantismo, e de dominação das demandas legítimas e pertinentes da população e da cidadania, o STF conseguiu implantar no coração da nação brasileira, não mais uma estaca como foi feito com o corpo de Tiradentes, mas sim um  sentimento de esperança e libertação.

Mesmo que tardio!
 
 
 

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