quarta-feira, 18 de março de 2015

UM DIA, 40 ANOS DEPOIS...


Não lembrei, nem fazia questão de lembrar. 
Mas estava numa reunião, agora, e na hora de se colocar a data, na ata, uma onda de recordações me veio à mente.
Este 18 de março de 2015 me trouxe um outro 18 de março.
Era o ano de 1975, um final de verão porto-alegrense típico, com temperatura agradável e a cidade ainda com ares alegres de sol abundante.
No Brasil, governado pelo General Ernesto Geisel, seu ministro Silvio Frota não se conformava em não ser ele o general presidente do momento.
Naquele fatídico dia 96 altos funcionários estatais, governamentais e de outras atividades, foram sequestrados pelo Codi/Doi, o braço da repressão armada e truculenta, que agia por dentro do regime militar, a tigrada, como era conhecida no jargão da área.
A mesma tigrada que matou na tortura o jornalista Vladimir Herzog e o líder operário Manuel Fiel Filho, em São Paulo.
Tudo para desestabilizar o mandato de Geisel, acusando-o de ter comunistas no governo e de ser um frouxo na luta contra a “subversão”.
Minha mãe me liga no meio da manhã, preocupada, pois tentara ligar para meu pai e, na assessoria jurídica da CEF, onde ele exercia a função de procurador, tinham-lhe informado que ele teria saído para visitar um filho no hospital.
Esse foi o estratagema para retirá-lo da área jurídica, de onde não o poderiam ter obrigado a sair, sem um grande alarde de seus colegas advogados.
Pois assim foi, o atraíram para a portaria e, quando lá chegou, foi encapuzado, jogado no chão de uma viatura c-14 azul, a viatura das ações repressivas, lhe colocaram uma pistola 45 na cabeça e o ameaçaram: fica quieto senão já morres aqui mesmo.
Ali começava o sequestro daquele cidadão de então 64 anos de idade, que tinha ousado ter sido um oficial militar da aviação, que tinha entrado na revolução de 1930 por inspiração de seu tio o Gal. Flores da Cunha, que participou da revolução de 1932 como ajudante de ordens do ministro Osvaldo Aranha, que foi preso em 1935 por ter se rebelado contra Getulio Vargas, que se aproximara perigosamente da Alemanha nazista, e que em 1937 fora para a guerra civil espanhola, como voluntário internacional contra o golpe militar engendrado contra a república democrática da Espanha, pelo general Franco, desde as possessões espanholas no Marrocos.
Além do sequestro de meu pai, a casa da família foi invadida por 8 homens fortemente armados de pistolas e submetralhadoras militares, todos de gravata, como se aquele fosse o novo uniforme para disfarçar a origem daqueles algozes violentos.
Toda a casa foi revirada, quebrada, nada deixaram sem o sádico traço da destruição.
Todos os cômodos foram invadidos e nada sobrou para contar a história daquela família.
Literalmente, pois todos os documentos pessoais, de toda uma história familiar, foram rasgados, cortados, retalhados, jogados no terreno da casa.
À noite, depois de que a família se refugiou em outra casa, o ambiente foi entregue a marginais comuns, não fardados, que roubaram tudo, queimaram papéis, destruíram mais de trinta anos de registros e documentos da família.
Naqueles 10 dias em que ficou em local incerto e ignorado, meu pai foi torturado, lhe aplicaram medicamentos para afrouxar as resistências, torturam uma moça grávida à sua frente para chocar e amedrontar, lembrando sempre do nome de suas filhas, filhos, de seus netinhos, citando um por um e com os nomes e endereços das escolas que frequentavam.
Como coroamento do horror, ainda, ele recebeu julgamento sumário, encenado por aqueles sádicos, foi levado a um paredão, olhos vendados, e lhe comunicaram que seria fuzilado.
A descarga de tiros foi dada, mas ele continuou em pé e se deu conta que o haviam matado só de brincadeirinha, e que essa era uma nova forma de tortura para destruir defesas, arrebentar a consciência, destroçar a normalidade de um homem aprisionado, para servir de pretexto golpista, entre generais que disputavam o poder.
Graças a um telegrama, que consegui enviar ao presidente Geisel e ao ministro Armando Falcão, e a outras manifestações da OAB/RS e outras famílias, denunciando o sequestro e a forma ilegal daquela ação toda, ainda antes da censura ser baixada nos jornais e meios de comunicação, a presidência da república foi obrigada a assumir as “prisões” por meio do III Exército.
Dessa forma a operação “200 milhas” que estava programada para jogar ao mar muitos daqueles sequestrados, foi abortada e eles foram distribuídos entre quartéis e Polícia Federal.
Dez dias depois, à meia noite de uma quinta-feira, uma viatura com homens armados estaciona na frente da minha casa. Lá de dentro saem alguns agentes e meu pai, completamente em estado de choque, olhos esbugalhados, excitado, com muita sede, falando muito, todo um comportamento que denunciava a “maquiagem” que lhe tinham aplicado, tanto química quanto comportamental.
Era outra pessoa. Nunca mais foi o mesmo de antes. Um dia me revelou, coisa raríssima naquele ser fechado e pouco confidenciador, que sonhava com uma desforra, com um revide contra seus algozes.
A família se desfez, o núcleo familiar, que ainda restava naquela cidade, passou por uma verdadeira diáspora.
Todos cortaram suas raízes e foram para outras paragens. Começar novas vidas, refazer as emoções violentas, tentar resgatar um pouco de normalidade e segurança.
Meu pai não se conformou com o seu sequestro ilegal e arbitrário. Exigiu processo e julgamento.
E, assim ocorreu, alguns anos depois.
Foi julgado na auditoria militar, por um júri composto por oficias da aeronáutica, sua arma de origem, e foi absolvido por unanimidade, das acusações de tentar reorganizar o partido comunista no Brasil.
Oficias presentes ao julgamento o homenagearam com postura e continência, por ser ele o oficial de maior patente no recinto.
Ironia, justo ele, que fora expulso daquele partido por o terem considerado de “direita”, por seu argumento de não querer ser um burocrata assalariado de um partido, quando defendia uma ideologia igualitária e justa.
Doce engano, para os comunistas um homem de direita, para a direita um permanente perigo por ter ido, em 1937, a uma guerra europeia, como voluntário internacional. Guerra que não permitiu que a Espanha se aliasse ao eixo, oferecendo suas duas frentes marítimas para Hitler, o que poderia ter desequilibrado o confronto, pela estratégica posição da Espanha, em relação ao Mediterrâneo e ao Atlântico.
E, hoje, 40 anos depois, após toda essa jornada, todo um esforço para refazer a vida, para não deixar que essas marcas afetassem todos os familiares, estamos em outra luta em nosso Brasil.
Quando pensávamos ter superado os episódios históricos de ditaduras e autoritarismo, assistimos um governo que se dizia progressista e democrático, advindo de um partido criado ainda pelo regime militar, dar demonstrações de dubiedade em relação às suas tendências e compromissos.
Há 12 anos o Brasil optou por esse partido, acreditando em suas promessas programáticas, em suas plataformas partidárias.
Mas, mais uma vez, enfrentamos esquemas de despiste da verdade e da realidade. Querem nos impor contraditórias teses quanto à governabilidade, à corrupção, à condução de uma sociedade que ainda desperta de décadas anteriores, sem democracia.
Refleti muito sobre o que é viver neste Brasil, que ainda não evoluiu, não amadureceu, não se firmou em uma caminhada democrática, efetiva.
40 anos se passaram, refiz minha vida familiar, mudamos de cidade, recomeçamos, e eu sempre ensinei a meus filhos que a esperança na mudança era o melhor, a forma mais correta de não carregar revolta, vontades de desforra, vendetas ou vinganças.
Agora mais uma batalha se desenha no horizonte. Pessoas apegadas a valores e crenças ultrapassados querem nos impor uma democracia por partes, uma coerência sem referenciais claros, querem nos ludibriar com mentiras e manipulações, como se não houvesse outras opções, a não ser aceitar a distorção da realidade como se nada houvesse de alternativo.
Vejo, e dou razão, ao que meu pai sempre me disse, entre aquele ano de 1975, até morrer em SP, em 1987, num verdadeiro exílio interno, que lhe impuseram pela força: o preço de uma consciência engajada com o avanço, coerente, passa por uma atitude permanente de lutar por dias melhores, sem aceitar máscaras, ou distorções.
E essa luta se dá, e se dará, dentro de nós, em nossos processos de transformações individuais, até que chegue ao coletivo, até que a sociedade se mobilize, até que aconteça a coragem de se manifestar, como está acontecendo neste Brasil de 15 de março de 2015.
Alegria, não houve balas, explosões, tiros, nem canhões.
Mas as armas das ideias, da vontade da sociedade, estão sendo usadas, brandidas, sem qualquer receio.
E todos se manifestando com as corres de nossa bandeira, mostrando, e comprovando, que com ordem poderemos chegar a um novo progresso, humano, político e social.
Ainda que com algumas dores, que ainda persistem, mas que serão removidas, com algumas lágrimas de júbilo e emoção, me engajo nas transformações.
Aprendi que não é matando que vamos vingar nossos mortos, que não é com privilégios que vamos recuperar o que nos foi roubado pelo arbítrio.
A vida é essa bela e desconhecida caminhada, que só vamos saber algo novo, se nos atrevermos a buscar novos limites e descobertas.
O passado é lembrança, recordação, e aprendizado.
O futuro, incerto e nebuloso, mas há a certeza de que novas possibilidades de construção nos esperam.
E, ao longo desse tempo, aprendi que a vida é como uma corrida de revezamento.
Se conseguirmos passar o bastão existencial, um pouco mais à frente, para as novas gerações, do que o recebemos, estaremos viabilizando o essencial avanço humano e conceitual.
Talvez por isso valha a pena viver!


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