Não lembrei, nem fazia questão de lembrar.
Mas estava numa reunião, agora,
e na hora de se colocar a data, na ata, uma onda de recordações me veio à
mente.
Este 18 de março de 2015 me trouxe um outro 18 de março.
Era o ano de 1975, um final de verão porto-alegrense típico, com
temperatura agradável e a cidade ainda com ares alegres de sol abundante.
No Brasil, governado pelo General Ernesto Geisel, seu ministro Silvio
Frota não se conformava em não ser ele o general presidente do momento.
Naquele fatídico dia 96 altos funcionários estatais, governamentais e de
outras atividades, foram sequestrados pelo Codi/Doi, o braço da repressão
armada e truculenta, que agia por dentro do regime militar, a tigrada, como era
conhecida no jargão da área.
A mesma tigrada que matou na tortura o jornalista Vladimir Herzog e o líder
operário Manuel Fiel Filho, em São Paulo.
Tudo para desestabilizar o mandato de Geisel, acusando-o de ter
comunistas no governo e de ser um frouxo na luta contra a “subversão”.
Minha mãe me liga no meio da manhã, preocupada, pois tentara ligar para
meu pai e, na assessoria jurídica da CEF, onde ele exercia a função de
procurador, tinham-lhe informado que ele teria saído para visitar um filho no
hospital.
Esse foi o estratagema para retirá-lo da área jurídica, de onde não o
poderiam ter obrigado a sair, sem um grande alarde de seus colegas advogados.
Pois assim foi, o atraíram para a portaria e, quando lá chegou, foi
encapuzado, jogado no chão de uma viatura c-14 azul, a viatura das ações
repressivas, lhe colocaram uma pistola 45 na cabeça e o ameaçaram: fica quieto
senão já morres aqui mesmo.
Ali começava o sequestro daquele cidadão de então 64 anos de idade, que
tinha ousado ter sido um oficial militar da aviação, que tinha entrado na
revolução de 1930 por inspiração de seu tio o Gal. Flores da Cunha, que
participou da revolução de 1932 como ajudante de ordens do ministro Osvaldo
Aranha, que foi preso em 1935 por ter se rebelado contra Getulio Vargas, que se
aproximara perigosamente da Alemanha nazista, e que em 1937 fora para a guerra
civil espanhola, como voluntário internacional contra o golpe militar
engendrado contra a república democrática da Espanha, pelo general Franco,
desde as possessões espanholas no Marrocos.
Além do sequestro de meu pai, a casa da família foi invadida por 8 homens
fortemente armados de pistolas e submetralhadoras militares, todos de gravata,
como se aquele fosse o novo uniforme para disfarçar a origem daqueles algozes
violentos.
Toda a casa foi revirada, quebrada, nada deixaram sem o sádico traço da
destruição.
Todos os cômodos foram invadidos e nada sobrou para contar a história
daquela família.
Literalmente, pois todos os documentos pessoais, de toda uma história
familiar, foram rasgados, cortados, retalhados, jogados no terreno da casa.
À noite, depois de que a família se refugiou em outra casa, o ambiente
foi entregue a marginais comuns, não fardados, que roubaram tudo, queimaram
papéis, destruíram mais de trinta anos de registros e documentos da família.
Naqueles 10 dias em que ficou em local incerto e ignorado, meu pai foi
torturado, lhe aplicaram medicamentos para afrouxar as resistências, torturam
uma moça grávida à sua frente para chocar e amedrontar, lembrando sempre do
nome de suas filhas, filhos, de seus netinhos, citando um por um e com os nomes
e endereços das escolas que frequentavam.
Como coroamento do horror, ainda, ele recebeu julgamento sumário,
encenado por aqueles sádicos, foi levado a um paredão, olhos vendados, e lhe
comunicaram que seria fuzilado.
A descarga de tiros foi dada, mas ele continuou em pé e se deu conta que
o haviam matado só de brincadeirinha, e que essa era uma nova forma de tortura
para destruir defesas, arrebentar a consciência, destroçar a normalidade de um
homem aprisionado, para servir de pretexto golpista, entre generais que
disputavam o poder.
Graças a um telegrama, que consegui enviar ao presidente Geisel e ao
ministro Armando Falcão, e a outras manifestações da OAB/RS e outras famílias, denunciando
o sequestro e a forma ilegal daquela ação toda, ainda antes da censura ser
baixada nos jornais e meios de comunicação, a presidência da república foi
obrigada a assumir as “prisões” por meio do III Exército.
Dessa forma a operação “200 milhas” que estava programada para jogar ao
mar muitos daqueles sequestrados, foi abortada e eles foram distribuídos entre
quartéis e Polícia Federal.
Dez dias depois, à meia noite de uma quinta-feira, uma viatura com homens
armados estaciona na frente da minha casa. Lá de dentro saem alguns agentes e
meu pai, completamente em estado de choque, olhos esbugalhados, excitado, com
muita sede, falando muito, todo um comportamento que denunciava a “maquiagem”
que lhe tinham aplicado, tanto química quanto comportamental.
Era outra pessoa. Nunca mais foi o mesmo de antes. Um dia me revelou,
coisa raríssima naquele ser fechado e pouco confidenciador, que sonhava com uma
desforra, com um revide contra seus algozes.
A família se desfez, o núcleo familiar, que ainda restava naquela cidade,
passou por uma verdadeira diáspora.
Todos cortaram suas raízes e foram para outras paragens. Começar novas
vidas, refazer as emoções violentas, tentar resgatar um pouco de normalidade e
segurança.
Meu pai não se conformou com o seu sequestro ilegal e arbitrário. Exigiu
processo e julgamento.
E, assim ocorreu, alguns anos depois.
Foi julgado na auditoria militar, por um júri composto por oficias da
aeronáutica, sua arma de origem, e foi absolvido por unanimidade, das acusações
de tentar reorganizar o partido comunista no Brasil.
Oficias presentes ao julgamento o homenagearam com postura e continência,
por ser ele o oficial de maior patente no recinto.
Ironia, justo ele, que fora expulso daquele partido por o terem considerado
de “direita”, por seu argumento de não querer ser um burocrata assalariado de
um partido, quando defendia uma ideologia igualitária e justa.
Doce engano, para os comunistas um homem de direita, para a direita um
permanente perigo por ter ido, em 1937, a uma guerra europeia, como voluntário
internacional. Guerra que não permitiu que a Espanha se aliasse ao eixo, oferecendo
suas duas frentes marítimas para Hitler, o que poderia ter desequilibrado o
confronto, pela estratégica posição da Espanha, em relação ao Mediterrâneo e ao
Atlântico.
E, hoje, 40 anos depois, após toda essa jornada, todo um esforço para
refazer a vida, para não deixar que essas marcas afetassem todos os familiares,
estamos em outra luta em nosso Brasil.
Quando pensávamos ter superado os episódios históricos de ditaduras e autoritarismo,
assistimos um governo que se dizia progressista e democrático, advindo de um
partido criado ainda pelo regime militar, dar demonstrações de dubiedade em
relação às suas tendências e compromissos.
Há 12 anos o Brasil optou por esse partido, acreditando em suas promessas
programáticas, em suas plataformas partidárias.
Mas, mais uma vez, enfrentamos esquemas de despiste da verdade e da
realidade. Querem nos impor contraditórias teses quanto à governabilidade, à
corrupção, à condução de uma sociedade que ainda desperta de décadas
anteriores, sem democracia.
Refleti muito sobre o que é viver neste Brasil, que ainda não evoluiu,
não amadureceu, não se firmou em uma caminhada democrática, efetiva.
40 anos se passaram, refiz minha vida familiar, mudamos de cidade,
recomeçamos, e eu sempre ensinei a meus filhos que a esperança na mudança era o
melhor, a forma mais correta de não carregar revolta, vontades de desforra,
vendetas ou vinganças.
Agora mais uma batalha se desenha no horizonte. Pessoas apegadas a
valores e crenças ultrapassados querem nos impor uma democracia por partes, uma
coerência sem referenciais claros, querem nos ludibriar com mentiras e manipulações,
como se não houvesse outras opções, a não ser aceitar a distorção da realidade
como se nada houvesse de alternativo.
Vejo, e dou razão, ao que meu pai sempre me disse, entre aquele ano de
1975, até morrer em SP, em 1987, num verdadeiro exílio interno, que lhe impuseram
pela força: o preço de uma consciência engajada com o avanço, coerente, passa
por uma atitude permanente de lutar por dias melhores, sem aceitar máscaras, ou
distorções.
E essa luta se dá, e se dará, dentro de nós, em nossos processos de transformações
individuais, até que chegue ao coletivo, até que a sociedade se mobilize, até
que aconteça a coragem de se manifestar, como está acontecendo neste Brasil de
15 de março de 2015.
Alegria, não houve balas, explosões, tiros, nem canhões.
Mas as armas das ideias, da vontade da sociedade, estão sendo usadas,
brandidas, sem qualquer receio.
E todos se manifestando com as corres de nossa bandeira, mostrando, e
comprovando, que com ordem poderemos chegar a um novo progresso, humano,
político e social.
Ainda que com algumas dores, que ainda persistem, mas que serão
removidas, com algumas lágrimas de júbilo e emoção, me engajo nas
transformações.
Aprendi que não é matando que vamos vingar nossos mortos, que não é com
privilégios que vamos recuperar o que nos foi roubado pelo arbítrio.
A vida é essa bela e desconhecida caminhada, que só vamos saber algo
novo, se nos atrevermos a buscar novos limites e descobertas.
O passado é lembrança, recordação, e aprendizado.
O futuro, incerto e nebuloso, mas há a certeza de que novas
possibilidades de construção nos esperam.
E, ao longo desse tempo, aprendi que a vida é como uma corrida de
revezamento.
Se conseguirmos passar o bastão existencial, um pouco mais à frente, para as novas gerações, do
que o recebemos, estaremos viabilizando o essencial avanço humano e conceitual.
Talvez por isso valha a pena viver!
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